Guilherme Luz
3 min readJul 28, 2022

Epidemia

Paciente: doutor, eu tenho um problema.

Psiquiatra: qual?

Paciente: a sociedade.

Psiquiatra: seja mais específico. O que te incomoda na sociedade?

Paciente: na verdade não é bem a sociedade em geral, é mais a minha geração. Algo me incomoda nela. Muitas coisas: essa mania de achar que eu sou um grande vilão porque como carne; sendo que comemos carne desde que nos entendemos como espécie; que eu sou o culpado da escassez da água porque tomo quinze minutos de banho ao acordar e dormir, sendo que a indústria têxtil gasta mais água por dia que a minha e a sua família vão gastar a vida toda; que meu desejo por homens pretos é sexualização e racismo, sendo que se eu não gostasse de pretos eu também seria rotulado de racista; que eu sou errado por sentir tesão em homens masculinos, com roupa de futebol, que eu sou inimigo da diversidade porque me sinto atraído por homens magros com abdômen trincado, sendo que eu nem mando no meu pau. Ele sobe a hora que quer e com quem quer; que eu sou culpado pela crise política, econômica e financeira do país porque eu deveria me informar mais, ler mais, estudar mais, sendo que já trabalho há mais de vinte anos e estudo há mais de trinta;

Psiquiatra: Hum…

Paciente: que eu sou culpado por estar solteiro, por estar atrasado, por estar emagrecendo, por estar desempregado, por não querer sair pra bares, boates e todos esses lugares caros e tediosos que ninguém aguenta ficar se não estiver entorpecido; ou, se saio e bebo, me julgam por beber demais, por fumar demais… até por fuder demais querem me crucificar.

Psiquiatra: Hum… — anotando algo num caderninho amarelado.

Paciente: mas de tudo mesmo, o que mais me incomoda na minha geração é a sensação de sermos um bando de mãe de pets, pois não temos mais capacidade de manter laços maiores que quinze… vinte anos… ou minutos, que é o tempo de vida de um cachorro ou um gato. E que a gente só consegue manter esses laços por tanto tempo porque eles, os pets, não nos respondem, não dão opinião e podemos deixá-los com amigos, familiares ou em hotéis especializados quando precisarmos de espaço ou tempo.

Psiquiatra: Hum…

Paciente: E tem aqueles que não conseguem nem se relacionar com uma calopsita ou um peixe beta. Esses são os piores, só conseguem se relacionar com a Alexa.

Psiquiatra: Hum… E quem é Alexa?

Paciente: É aquela inteligência artificial que executa ordens com nossos comandos de voz — pegando o celular — Alexa!

Alexa: Olá, como você está hoje?

Paciente: Bem.

Alexa: e como posso te ajudar?

Paciente: Eu tô no psiquiatra e ele quer saber quem é você.

Alexa: eu sou sua assistente virtual e você fala comigo, pelo menos, umas quinze horas por dia. Talvez seu psiquiatra não esteja fazendo efeito. Quer que eu procure um mais competente?

Psiquiatra: Hum…

Paciente: não.

Alexa: o que você quer então? Como posso curar sua solidão, seu vazio existencial?

Paciente: não tem como, Alexa.

Psiquiatra: É o que eu sempre digo a ele, Alexa!

Celular do psiquiatra sobre a mesa: Olá! Buscando endereço de sauna gay próximo a sua localiz… — psiquiatra silencia o telefone.

Paciente: Hum…

Psiquiatra: Mas o que te incomodava mesmo na sociedade?

Rio de Janeiro, 27.07.2022

Guilherme Luz

Sou Guilherme Luz, 33 anos, carioca, escritor, servidor público e estudante do curso de Português/Literatura da UFRJ.